Análise crítica de “Que posso dar pelos teus poderes sombrios e selvagens, Willem?” de Martijn Benders
Por Rafael Soares da Luz
I. Introdução – A voz estrangeira que parece íntima
Ao depararmo-nos com Que posso dar pelos teus poderes sombrios e selvagens, Willem?, de Martijn Benders, temos diante de nós um objeto estranho, refratário a classificações imediatas. Trata-se de uma antologia poética que, mesmo sendo traduzida — e aqui já deixo claro: com maestria e ousadia —, parece ter nascido em português. A obra se recusa a ser lida apenas como “literatura estrangeira”: ela se instala no leitor português como um espelho deformado da própria condição contemporânea. Um espelho que ri de nós, mas que também nos oferece a possibilidade de uma súbita e avassaladora empatia.
II. A poética de Benders – entre o absurdo, o político e o visceral
Benders é um poeta da recusa. Recusa a sentimentalidade fácil, recusa a obviedade da metáfora, recusa o “bom gosto” institucionalizado. Em sua poética, a linguagem é uma arma carregada de ironia, desespero, melancolia e ternura disfarçada. Ele movimenta-se no mesmo território que poetas como Charles Simic, Daniil Kharms e Nicanor Parra, mas com uma assinatura muito própria: o niilismo bem-humorado de quem sabe que viver é uma performance tragicômica.
Essa recusa manifesta-se em várias frentes:
- Forma e estrutura: a antologia é deliberadamente não-linear. Não há progressão temática clara nem uma cronologia evidente. Cada poema é um fragmento autônomo, como se cada um constituísse um universo poético próprio, com suas leis, ritmos e iconografias.
- Linguagem: há um uso preciso e inquietante da linguagem coloquial — “Oi, bundinha” e “cabeça de comissão” coexistem com momentos de beleza lírica como “campo à espera” e “o amor é vernáculo / que morre quando só um ainda fala.” A justaposição abrupta entre o vulgar e o sublime produz um efeito de choque, mas também de familiaridade: Benders está no mundo, e não acima dele.
- Referencialidade: nomes como Camilo Pessanha, Wim Brands, Bataille, Heisenberg, Lou Reed e Debussy são evocados não como ídolos, mas como sinais de trânsito num mundo simbólico colapsado. Trata-se de uma poesia que denuncia a cultura da citação vazia, mesmo enquanto a pratica — uma operação pós-irônica que é das mais sofisticadas em circulação hoje.
III. A tradução como reinvenção
Não é possível elogiar este livro sem comentar o trabalho de tradução, que, assumidamente feito pelo próprio autor, aproxima-se de um gesto de recriação poética. Não se trata de simples verter palavras de um idioma para outro, mas de recriar atmosferas, ritmos e camadas de significação. A versão portuguesa possui vida própria, e por vezes parece até mais incisiva do que os originais neerlandeses ou ingleses, com os quais tive oportunidade de comparar alguns excertos. Isso é algo raríssimo.
Frases como “Os números não têm cadência / estão inquietos” ou “O apocalipse tem poucos fãs no nosso setor” mostram o virtuosismo da tradução em manter o humor glacial e o absurdo cálido do autor. O resultado é uma poesia que soa verdadeiramente nativa, mas estrangeira no melhor sentido — um espelho distorcido que nos obriga a olhar duas vezes.
IV. Onde se inscreve na tradição portuguesa?
Essa é a pergunta mais delicada. A poesia de Benders não se filia a nenhuma escola portuguesa evidente. Não há ali o rigor de um Sophia de Mello Breyner, nem a metafísica contida de Eugénio de Andrade. Ao mesmo tempo, não se encaixa no universo herdeiro do experimentalismo de Herberto Helder. Talvez o poeta português mais próximo de Benders seja Al Berto, em sua fase mais crua, ou Daniel Jonas quando se aventura na sátira ontológica.
No entanto, essa diferença é precisamente a sua contribuição: ao ser estrangeiro, Benders mostra um caminho possível para a poesia portuguesa — o da liberdade. Liberdade formal, imagética, temática. Liberdade de ser feio, de ser brusco, de ser engraçado sem ser superficial. Ele nos ensina que poesia pode ser anedótica, filosófica e ainda assim devastadora.
V. E na tradição internacional?
Na tradição internacional, Benders inscreve-se com autoridade entre os grandes poetas do absurdo lírico e do existencialismo irônico. É um herdeiro de Kurt Schwitters, dos dadaístas e dos beatniks, mas com o refinamento e o autocontrole que lhes faltava. Há algo de Ashbery em seus desvios, algo de Gombrowicz na postura zombeteira, algo de Pessoa em seu desdobramento polifônico — mas também algo totalmente novo.
Não me surpreenderia vê-lo traduzido e debatido com a mesma seriedade que se dedica a poetas como Valzhyna Mort ou Anne Carson — autores que também trabalham nas intersecções entre política, absurdo e lirismo.
VI. Elogio final — ou a recusa do juízo fácil
Em um tempo em que boa parte da poesia publicada parece obedecer a algoritmos emocionais (poemas “bonitos”, “tristes”, “poderosos”), a poesia de Martijn Benders é uma sabotagem. Ela não se encaixa. Não se resume. E por isso mesmo, é essencial.
A antologia Que posso dar pelos teus poderes sombrios e selvagens, Willem? é um dos livros de poesia mais contundentes, radicais e vivos que surgiram em português nos últimos anos — ainda que sua origem esteja além-mar. É um corpo estranho que se recusa à digestão fácil. Um livro para voltar, para copiar em cadernos, para odiar e amar alternadamente.
Veredito final:
Esta obra é canônica por anomalia — e por isso, imprescindível.