Uma erosão antropológica da capacidade de entrega
Minha mãe sempre acreditou ter, em casa, um quadro de grande valor. Mas quando o levou a um comerciante de arte especializado, a decepção foi grande: talvez a pintura valesse cem euros. Talvez. Isso, no entanto, não se devia à obra em si ou ao seu autor. Segundo o marchand, trata-se de uma tendência: obras de arte em geral estão se tornando cada vez menos valiosas. Por quê?
Sobretudo porque o colecionador de arte como arquétipo está em vias de extinção. Jovens milionários da geração millennial — e da geração seguinte ainda mais — raramente colecionam arte. Preferem pendurar na parede uma imagem retirada de um videojogo.
Exatamente o mesmo acontece hoje em dia com a poesia: os colecionadores estão desaparecendo. Graças a eles, no passado havia algumas centenas de pessoas que realmente queriam possuir o seu livro. Hoje, isso foi completamente substituído por vendas ocasionais em eventos e leituras — algo que nada tem a ver com colecionar poesia.
E como até as bibliotecas deixaram de praticar a arte da coleção e as livrarias já não consideram sua missão manter o melhor disponível, o quadro que se pinta para quem deseja escrever poesia é bem pálido — e nem falamos ainda sobre a censura política.
As pessoas já não acreditam que isso tenha valor. E isso se deve, em parte, ao fato de que já não sabem como desfrutar. O realmente assustador da situação não é que a arte e a poesia estejam desaparecendo do mercado — os mercados desaparecem e renascem o tempo todo — mas sim que a capacidade de experimentar êxtase está sumindo. O que isso significa?
Êxtase, no sentido original da palavra, quer dizer literalmente: sair de si, abandonar temporariamente o próprio eu, ser elevado acima da condição cotidiana. Arte e poesia têm sido, por séculos, exatamente essas passagens. Ofereciam intensidade, um vislumbre de algo que é mais do que o eu — algo que te sacudia, encantava, fazia teu corpo estremecer ou te deixava em silêncio diante do sentido.
Mas num mundo que já não distingue entre experiência e informação, a experiência poética foi rebaixada a conteúdo. E conteúdo — a praga do nosso tempo — não é, por definição, extático. Conteúdo quer ser consumido em pedaços, não transformar. Não quer mudar você, apenas que clique no próximo link.
O desaparecimento do colecionador é apenas sintoma de uma carência mais profunda: esquecemos que a arte nos exige algo. Que é preciso abrir-se, expor-se, deixar-se tocar — e que isso não gera retorno imediato. Passamos a viver numa cultura de segurança, onde a arte precisa ser “compreensível”, “inclusiva”, “acessível”, sobretudo: segura. Mas êxtase não é seguro. É perigoso, porque provoca algo em você. E é justamente aí que reside seu valor.
Que as pessoas já não saibam desfrutar da poesia ou da pintura não é, portanto, apenas uma questão de gosto ou moda. É uma erosão antropológica da capacidade de entrega. Uma cultura que perde essa entrega, torna-se rasa, redutora, neurótica. Ela preenche tudo com ruído porque já não ousa sentir o grandioso.
Talvez esta seja a tarefa do poeta nestes tempos: não ser lido, mas velar pela possibilidade do êxtase. Como um fogo que continua a brilhar sob as cinzas do mundo. Porque enquanto existir um único verso capaz de rasgar o céu — ainda há esperança.
Enquanto isso, criei uma versão portuguesa de Willem:
Ainda estou muito satisfeito com esta capa. Nenhum crítico na Holanda teve algo a dizer sobre ela, mas basta pedir a uma IA para analisá-la e ela compreende imediatamente:
A capa da edição portuguesa de Que posso dar pelos teus poderes sombrios e selvagens, Willem? é uma afirmação visual poderosa que contém múltiplas camadas de significado — tanto na imagem quanto na tipografia.
Análise da imagem
O elemento visual central é um objeto (possivelmente uma pessoa ou escultura) completamente coberto por uma lona plástica azul, parcialmente envolta em páginas de jornal. O cenário é um muro exterior áspero e desgastado, com uma pequena janela gradeada — urbano, um pouco decadente.
– A figura coberta evoca de imediato associações com:
– Protesto anônimo / impotência (oculta, não ouvida)
– Transmissão impessoal de informação (os jornais como pele)
– Individualidade sufocada (figura sob plástico = falta de ar)
– Ausência ou invisibilidade da poesia ou da identidade
– Os jornais sugerem mídia de massa, banalização, consumismo — em contraste com o valor poético do próprio livro.
– A lona plástica contrasta fortemente com a ideia de “sombrios e selvagens” — o que é selvagem e obscuro aqui é abafado, embrulhado, neutralizado.
– A janela com grades ao fundo reforça a ideia de aprisionamento ou limitação, talvez também uma alusão às estruturas institucionais (como as convenções literárias?).
Tipografia e texto
– O texto é moderno e claro, em uma tipografia sans-serif — limpa, digital, sem qualquer arabesco poético.
– A divisão cromática e posicional é lúdica mas subtil:
– “Que posso / dar pelos” está em azul claro: interrogativo, aberto.
– “teus poderes / sombrios e selvagens” em azul um pouco mais escuro: mais denso em conteúdo.
– “Willem?” volta ao tom mais claro — um chamado, um nome, um eco.
– O nome de Martijn Benders está na parte inferior, em branco, calmo e neutro — modesto diante do poema que serve como título.
Simbologia e tom
– A capa expressa um absurdo existencial que se alinha bem ao estilo de Benders:
– Uma imagem que é, ao mesmo tempo, banal e ameaçadora, espirituosa e inquietante.
– A figura parece um eremita contemporâneo, escondido entre lixo e notícias, como um poeta solitário abrigado sob camadas de significado.
Posicionamento
– Para o mercado português, esta é uma capa intrigante e enigmática, que foge das convenções das coletâneas poéticas.
– Atraíra provavelmente leitores com afinidade por:
– Arte contemporânea
– Surrealismo ou absurdo
– Crítica à mídia ou à sociedade
– Poesia que não conforta, mas questiona
Conclusão
A capa é altamente estratificada e visualmente eficaz. Desperta questionamentos imediatos — sobre identidade, sobre a relação entre corpo e informação, entre estética e opressão. O título funciona como uma contra-voz poética à imagem plastificada: um chamado, uma oferta, uma tentativa de conexão.
Martinus Benders, 07-04-2025